segunda-feira, 24 de novembro de 2008

HISTÓRIA DO DIA nº67 O Tesouro da Vila (VER MAIS EM www.historiadodia.pt)


O Tesouro da Vila

António Torrado
escreveu

Cristina Malaquias
ilustrou


Andava o senhor Firmino a vender lotaria nas ruas de Vila Nova, ao começo deste estranho caso.
Era cauteleiro o senhor Firmino.
- Quem quer a sorte? O Firmino dá sorte! Quem quer os últimos para amanhã? - apregoava ele.

De boné à banda, com um cacho de cautelas penduradas do braço, o senhor Firmino percorria a vila. Tinha a cara queimada do sol e do vento, que lhe baralhava os bilhetes inteiros e as listas dos prémios.
- Anda amanhã a roda para os números do Firmino - prometia.

- Ainda tenho um bilhete quase inteiro com o meu palpite...
Era muito popular na vila o senhor Firmino. Houve, por isso, um grande sobressalto quando se soube o que tinha sucedido ao senhor Firmino.

Calculem que... O melhor será dar-lhe a palavra, porque ele sabe contar melhor do que eu:
- Já há tempos que não ia para os lados do Outeiro, lá no fim da vila. O sítio é mau para vender jogo. Tem pouco movimento, mas, junto à bomba da gasolina, às vezes, consigo arranjar freguês. Ia com o sentido nisso, porque queria despachar jogo.

Na bomba, já uma vez me ficaram com um bilhete...
- E desta arranjou fregueses novos... - interrompeu alguém.
O senhor Firmino zangou-se:
- Não brinque com a minha pouca sorte, homem! Podia eu lá calcular que me ia suceder uma daquelas?! Eu ia para lá, e cruzei-me com um rebanho de cabras, tocadas por um garoto, que é afilhado do Bolota.

Estava uma ventania dos diabos. Para proteger os bilhetes, ajeitei-os debaixo do casaco e segui caminho. Passei pelo meio do rebanho e, de facto, reparei que uma das cabras engraçara comigo e se pusera a seguir-me, com o focinho a roçar-me as pernas. Achei simpático o bicho e até me virei para lhe fazer uma festa, calculem!

Nessa altura, a cabra fugiu e foi quando eu vi que ela levava nos dentes um bocado de papel cor-de-rosa. Tive um pressentimento, fui ver o jogo e faltava-me um bilhete, um dos que tinha ficado fora do casaco. A cabra papara um bilhete, parte do qual levava ainda na boca.

Corri atrás dela, corremos os dois, eu e o pastor ou os três, eu, o garoto e a cabra, que corria mais do que nós dois juntos. Claro que, quando a apanhámos, já tinha engolido o resto. Disse-me o rapaz que ela, no outro dia, comeu uma toalha e um lençol. Que esperam dum bicho destes?
- E agora? - perguntaram.
- Agora é esperar.

Fui ter com o Anselmo Bolota, que é o dono das cabras, e ele, depois de grande questão, resolveu pagar parte dos prejuízos, ou seja, ficou com três décimos do bilhete que a cabra comeu.
- Então o resto?
- Quem vai arriscar-se a comprar cautelas que estão na barriga de uma cabra?

Com o resto fico eu ou a cabra, a única, afinal, que já ganhou. O número é o 17029. Depois de amanhã anda a roda!
Foram dois dias ansiosamente vividos por todos os de Vila Nova e arredores. Não se falava de outra coisa. E se o 17029 ganhava a Sorte Grande? Era uma pipa de massa, pois então! A dividir por quem?

Pelo Firmino e pelo senhor Bolota, que só comprara três décimos, mas era o dono do animal! Por ninguém, visto que não havia bilhete que comprovasse, depois, aos balcões da Santa Casa, o direito ao prémio? Mas que grande complicação!

No Café Central, na Leitaria Sevilhana, no Jardim da Guia, no largo da Igreja, no pátio da escola, nas lojas da Rua dos Alecrins, o único tema era o tesouro, o possível mas obscuro tesouro, guardado e bem guardado na barriga de uma cabra de seu nome Rabisca.
E essa, sim, a Rabisca, como se comportava ela? Ora!

Continuava a mastigar o que lhe vinha ao dente, sem ligar a mínima importância à balbúrdia que tinha provocado.
"Ai, se saísse a sorte grande no 17029!...", pensava o senhor Firmino, o senhor Bolota e toda a vila, em peso.

Andou a roda, saltitaram as bolinhas dos números, mas o 17029 ficou-se no meio dos outros, dos que não saíram pela porta mágica da fortuna.
Quando a vila soube que o 17029 não tinha sido premiado, respirou finalmente, aliviada.

O senhor Firmino queixou-se da sua sorte e prometeu nunca mais comer queijo de cabra, mas com o tempo, o bom cauteleiro acabou por levar o caso para a brincadeira.

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