quarta-feira, 1 de outubro de 2008

HISTÓRIA DO DIA nº16 O Destino da Música (VER MAIS EM www.historiadodia.pt)


O Destino da Música

António Torrado
escreveu

Cristina Malaquias
ilustrou
Era uma vez uma música, uma melodia. Andou pelos ouvidos das pessoas.
Alguns cantarolavam-na. Outros assobiavam-na. Fosse em lá-lá-lá, no céu da boca, ou em tri-ti-ti, na ponta dos lábios, sabia sempre bem.

Quando era tocada no coreto da praça, as pessoas paravam de conversar e aproximavam-se pé ante pé, meneando a cabeça ao som da música. E, quando a música acabava, batiam palmas entusiasmadas, que tanto se destinavam à música como à banda que apuradamente a tocara. E pediam "Bis! Bis!".

Às vezes, o maestro fazia-lhes a vontade. Nova sessão do encantamento e, no fim, mais uma grande revoada de palmas.
Acontecia as pessoas acordarem, de manhã, com a música a rodopiar nos ouvidos. Era bom.

Acontecia as pessoas adormecerem, à noite, com a música a rodopiar nos ouvidos. Também era bom.

E, durante o dia, os carpinteiros, a serrarem, assobiavam-na, as lavadeiras, a lavarem, cantavam-na, e toda a gente, quer estivesse a trabalhar quer fosse dar um passeio solitário pelo campo, espalhava-a pelos ares, dando mais vida à música que serpenteava, feliz, em direcção às nuvens.

Mas a banda deu a conhecer outras melodias. Era seu dever valorizar-se e renovar o repertório. Não podia estar só a tocar as mesmas músicas de antigamente.
Porque é que não voltam a tocar aquela que começa assim: Lá-lá-lá...? - perguntava alguém, com saudades da velha música.

Não havia quem soubesse responder.
A pouco e pouco, a música foi-se apagando das memórias.
Para onde vão as melodias que nunca mais são tocadas?
Eu sei, isto é, julgo saber. Os sons sobem.

Seja de flauta, de harpa ou de voz, o som solta-se donde é emitido e como leve coluna de fumo busca o ar transparente, onde vogam as andorinhas. Cada vez mais alto, o som atravessa as nuvens...

Quando chove e as gotas de chuva tilintam nas águas dos rios e dos lagos, os sons que subiram regressam à Terra. Todos juntos, em grande confusão, escorrem pelas correntes de água, em caudais de música, em ondas, em cascatas, e vão ter ao mar.

Os sons mais pesados vão para o fundo. Os outros permanecem à superfície e, levados pelo balanço das ondas, navegam, de mistura com algas, penas de gaivotas, bocadinhos de luz e de prata, roubados ao Sol.

Estava eu na praia, a contemplar um pôr de Sol (sou coleccionador de pores de Sol, não sei se sabem), quando uma musiquinha suave me trespassou os ouvidos.

Os óculos já embaciados da poalha da maresia ficaram ainda mais embaciados, porque, de repente, me lembrei de que tinha ouvido aquela música à beira de um coreto pela mão do meu avô Domingos. Portanto, há muito e muito tempo...
Não estava a inventar.

Para ter a certeza, aflorei a música aos lábios, num sussurro de um assobio, que voou em direcção às nuvens rosadas do entardecer.
Foi então que resolvi escrever esta história.

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