terça-feira, 23 de setembro de 2008

HISTÓRIA DO DIA nº9 O casal de gafanhotos (VER MAIS EM www.historiadodia.pt)


O casal de gafanhotos

António Torrado
escreveu

Cristina Malaquias
ilustrou

Era um casal de gafanhotos. Ele tinha repentes de aventureiro. Ela não tanto.
- Vamos dar a volta ao mundo, mulher - dizia o gafanhoto.
- Demorará muito, homem? - perguntava a gafanhota.
- Vamos e vimos, num salto.
Mas não era bem assim.

Tiveram de dar muitos saltos, uns a seguir aos outros, sem que chegassem sequer a sítio que se visse.
- Doem-me as dobradiças das pernas - queixava-se a gafanhota.
Ele animava-a:
- É só mais uns saltos e estamos lá.
Lá, aonde?

O gafanhoto não sabia, mas continuava a saltar como se tivesse molas nas pernas. E tinha.
A gafanhota foi ficando para trás, cada vez mais para trás. Já nem se via, de tão longe que estava. E ele sempre aos saltos para a frente.
Perderam-se um do outro.

- Quando tornar da volta ao mundo, encontro-a - disse o gafanhoto.
E continuou a sua sobressaltada viagem.
A gafanhota, derreadinha, pendurou-se numa haste de caniço e esperou. Esperou que tempos. Ai que tempos, ai que tempos, ai que tempos...

Estes ais todos são os suspiros da gafanhota, com saudades do seu gafanhoto.
Até que viu, ao longe, do lado donde tinham partido, um gafanhoto, saltaricando, em direcção a ela. Como a gafanhota sabia que o mundo é redondo, não estranhou. O gafanhoto aproximava-se, a olhos vistos. Até que enfim.

Mas, afinal, não era quem ela esperava. Era outro gafanhoto.
- O seu marido manda dizer que está para chegar não tarda - avisou-a o saltarico, sem deixar de saltar.
Sempre era uma esperança. Ai, ai, ai, mais uma fiada de suspiros da gafanhota, porque o tal, que prometia não tardar, tardou.

- Se eu fosse para trás, encontrava-me com ele e encurtava-lhe a viagem - matutava a gafanhota.
Foi o que fez. Mas - azar dos azares! - desencontraram-se. Ele por uma linha de salto, ela por outra. Cruzaram-se no ar, à distância de não se verem.

A gafanhota, depois do seu longo repouso, ganhara novas energias e saltava, saltava, ao ritmo do seu coração em ânsias.
- Hei-de encontrá-lo! Hei-de encontrá-lo! - era a música dela.
Quem lhe diria que se afastava, que se afastavam os dois, cada um a saltar para a sua banda?

Quando o gafanhoto passou pelas pirâmides do Egipto, disse:
- Já aqui estive uma vez.
Fez cálculos de cabeça e concluiu que estava a caminho da segunda volta ao mundo. Por isso é que ele se sentia cansado...
Parou.

Fincou as patas na cabeça da Esfinge, que, impenetrável, olha o tempo, e esperou. Assim que lhe passasse a quebreira das pernas, havia de continuar.
O gafanhoto sonolento cabeceava, quando uma voz conhecida o despertou de vez.
- Ai o meu gafanhotinho querido! Quem se quer bem sempre se encontra...

Claro que era a gafanhota. Fizeram uma grande festa um ao outro, na cabeça da Esfinge, e depois puseram-se a trocar impressões. Perguntava o gafanhoto para a gafanhota:
- Tu viste uma cidade onde as ruas são canais de água? E aquela torre de ferro muito alta, no meio de uma cidade linda, viste?

E aquele grande rio, na Índia, onde vêm banhar-se novos e velhos, doentes e sãos, viste?
Ela dizia que não. Não vira nada, no fito só de encontrá-lo a ele.
- Nem sabes o que perdeste, mulher. Mas deixa estar que é a maneira de eu, agora, te mostrar isso tudo.
- Trouxeste postais? - perguntou a gafanhota, ingenuamente.

- Quais postais, qual nada. Vamos correr mundo, dar outra vez a volta toda - entusiasmou-se o gafanhoto.
- Fica para depois... - ainda propôs a gafanhota.
Sem sucesso. Já o gafanhoto saltava, de pernas elásticas, como se a história agora tivesse começado.

- Anda, mulher. Não te atrases - gritava-lhe.
E lá foi ele a saltar, à frente.

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